Viver no país das bicicletas não significa viver no “paraíso das
bicicletas”. Nada pior do que pedalar no frio, com uma chuva fina e
fria cortando o rosto.
Lógico que também há sempre o lado positivo de tudo: encarar a vida
de frente e estar muito feliz pela força de pedalar, pois saúde é o
melhor de todos os bens.
O otimismo e a poesia, porém, acabam no pneu furado, no sorriso
engraxado do bicicleteiro, que fará aquele típico serviço holandês
com um preço de se perder o equilíbrio.
Consertar um pneu, em Amsterdã, custa 12 euros. Dá pra alimentar uma
criança na África durante um mês. E são tantos os furos quantos são
os desmazelos. A solução é sujar as próprias mãos, ou comprar um kit
pra conserto de câmeras de ar.
Há que se tomar muito cuidado pra andar de bicicleta em Amsterdã, o
trânsito é louco, composto por bondes, carros, motos, patinadores de
tanga, pedestres, toda a sorte de animais, como gatos, junkies,
turistas e... holandeses.
E, pra servir de tapete a tudo isso, cacos de vidro e cocô de
cachorro.
É muito perigoso pedalar com pressa: do carro estacionado, alguém
abre uma porta, dando uma nova dimensão ao ciclismo: o vôo, com
direito a ambulância pro hospital, nos casos levados mais a sério. A
lei da gravidade é sempre mais forte que a lei do trânsito.
Mas tudo isso é questão de adaptação. É sentar a bunda no selim e
sentir-se em casa. Somos tantos os ciclistas e tanto são os
momentos, que a proporção que sejamos nós os escolhidos pra
fatalidade é muito pequena. Muito maior são as oportunidades para
bons momentos.
Por isso, o pior de tudo é encarar os roubos. Por mais cadeados que
se ponha, por mais cuidado que se tenha, mais dia, menos noite, sua
bicicleta será roubada, porque tem sempre alguém pronto pra estragar
a boa estatística da sua vida. Ano passado me foram cinco. Três
foram minhas. E quando eu finalmente havia aprendido a proteger-me
dos roubos, passaram a roubar as bicicletas do monstrinho do meu
filho.
Depois que roubaram a sua primeira bicicleta, só de raiva e comprei
uma mais bonita ainda e com seguro. Mas os cadeados, aprovados pela
seguradora, não foram suficientes pra conter a vontade dos ladrões.
A última que compramos possui três cadeados e sete regras de como
bem prender uma bicicleta. Apesar de muitas as chaves, são poucas as
esperanças.
Os vagabundos roubam sua bicicleta novinha em folha e vão vender na
praça da Rainha, (Koninginsplein) pelo preço da porção da droga em
uso. Sempre que me roubam a bicicleta, eu fico triste, cabisbaixo,
parado no lugar onde a vi pela última vez, como se ela tivesse voado
embora.
A partir daí, começo a me lembrar dos seus pneus macios e do seu
freio decidido. Nunca pensei que eu iria sentir saudades de um
pedacinho de arame amarrado no guidão como um anel, me protegendo
dos taxistas sanguinários e dos trilhos de bondes traidores.
Mas, eu aprendi com o próprio roubo das minhas bicicletas, como é
fácil “adquirir” uma em Amsterdã. Há muita gente que simplesmente se
esquece de fechar o cadeado, ou o faz de maneira errada.
Nós, seres superiores de carne e lã, estamos sempre querendo chegar
em casa logo, levados por esses bichos de ferro e borracha. Mas as
bicicletas, o que elas querem mesmo é sair por aí livres, nas mãos
de qualquer um, pra se livrarem da nossa tirania de ferrugem e
cadeados.
Esse drama todo, apesar de tudo, é pra quem vive nas “grandes”
cidades da Holanda. Pra quem está nos vilarejos do interior, as
chamadas dorpje, a vida é diferente, e talvez a bicicleta esta
guardada na garagem, esperando um final de semana prometido há
meses.